segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

6

‘Capítulo Sexto – Um novo sentido’

Parecia apagado. Não parecia mais breu, ausência... Mas como se tivessem desligado a luz. Os riscos de cor eu já não podia identificar – o que me fazia pensar que as borboletas que ficaram flutuando estavam indo embora – e o som, era pouco e quase inexistente. Tinha um som ambiente que parecia muito longe de mim, distante, mas ainda presente.
A Renata do outro tempo parecia ter ido embora. Eu não percebia sua presença ao meu lado. Era como se ela tivesse se apagado do fundo do poço, como se não houvesse mais ninguém morando por lá. Nem mesmo eu podia sentir a presença das fotografias ou de qualquer coisa que eu sentia antes. Parecia ser só eu e o espaço parado, e o tempo, lentamente, passando...
Meus sentidos se intensificam cada vez mais, na escuridão da luz, a ponto de as pedras embaixo das minhas costas ficarem cada vez mais grossas.
Por mais incômodo que fosse, eu estava gostando de ficar lá.
— Acendam as luzes!
Ouvi uma voz que gritava do alto, ordenando e imediatamente sendo atendida. As luzes foram acesas tal como de um disjuntor que acende os holofotes de um campo de futebol. Por mais cega que eu estivesse, senti que as luzes iluminavam a mim.
Um movimento brusco começou no meu estômago, tal como uma revolta. Era como se as borboletas amarelas tivessem todas, ao mesmo tempo, movimentando-se para fora de mim. Podia sentir o esforço das asas para empurrar minha barriga pra cima, e logo, meus braços também pareciam um borbulhar de asas... Todas se mexiam, sincronicamente, expulsando meu corpo do chão e erguendo-o em direção a luz, que a cada milímetro de altura, ficava mais branca.
Meus pés pareciam criar asas, e por mais que eu quisesse me desesperar, eu não podia. Era como se sentisse-me parte daquele movimento, era como se eu o comandasse, como se eu quisesse! Borboletas pelo meu corpo todo!
E minha cabeça, pesada, pesada demais... Senti uma reviravolta tomar toda minha cabeça para levantá-la, com uma determinação e força imensas, coisa que eu nunca senti igual. Meus olhos estavam cheios de borboletas... E segundos depois, eu já não mais sentia as pedras grossas do chão. Meu corpo levitava, com esforço... Só podia sentir o vácuo que abrigava aquele lugar, um vácuo gelado, e a cada milímetro erguida mais acima o fundo do poço tornava-se um vácuo mais quente.
Estava em mim. Inteiramente integrada no meu corpo e mente de uma forma tal que não consigo me recordar ter acontecido antes. Eu flutuei, não sei quanto tempo ou quão longo percurso, mas estava me erguendo em direção a luz. Sentia todo o ânimo dominar meu corpo, e leve, calma, consciente, eu estava bem. Sabia que dali ia surgir um novo começo. Era como dançar para mim, era como brilhar no palco que eu ensaiei para ver acontecer. Eu estava no meu domínio completo, entregue, atenta. Podia sentir como nunca antes...

[Era como ver um truque de mágica. Renata parecia levitar...]


A luz me tragou.
Fora um instante tão repentino que eu nem poderia tentar decifrar o que acontecera.. Foi como ser sugada pelo meio de um redemoinho, sem ter direito a contestação, foi como estar à beira do precipício e sem aviso, sem empurrada para dentro dele. A luz me tomou de maneira que minha consciência sequer fez parte de mim, não pude ao menos notar... Era enquanto eu flutuava na minha existência. A luz intensa me tragou e me trouxe até aqui. Esse estágio profundo de sono.

Uma cama.
Dentro do quarto 276, Renata descansa. Seu corpo está parado, completamente estirado na cama, o que de fato, não é o comportamento esperado durante o sono agitado que costumeiramente ela apresenta. Suas pálpebras estão se movendo de maneira que podemos concluir que os olhos se mexem de um lado para o outro, ativos. O ventilador está barulhento. E não está funcionando direito, o quarto está abafado.
Renata está num sono que já dura mais de 8 horas, e é provável que esteja próximo da hora de ela acordar. O dia já esboça a manhã, e hoje, segunda-feira, ela freqüenta sua faculdade de filosofia.
O sonho não representa a temporalidade real, logo, um sonho pode parecer durar uma vida inteira. Falo de sonhos porque Renata é uma sonhadora, no sentido denotativo da palavra, visto que desde sua infância não há um dia sequer que o sono venha sem um sonho. Para ela não é novidade ver a “realidade” desapontando as leis da física, mas por mais assídua que seja no assunto, os sonhos ainda a atormentam como pesadelos infantis.
Voltando às pálpebras, eu nunca havia notado como elas ficam enquanto ela dorme. Será que tem algo de errado nisso? O movimento parece tão contínuo que dá a impressão que estão voltando o mesmo filme em determinado momento, sem parar. Lupping, acho que é assim que chamam... Um eterno retorno naquele ponto, recomeçando de novo a todo momento.
Deixa estar. Talvez a culpa seja mesma minha.
Acho que é hora de retomar a consciência...

[Renata está presa no vácuo branco.]

domingo, 20 de fevereiro de 2011

5

'Capítulo Quinto – A esperança é amarela'

— Ora, vamos! Mais depressa! Depressa que elas são rápidas! Danadinhas que me escapam a alma!
E numa cegueira incômoda, vendo o que eu não via, eu podia sentir uma presença amarela, e por um instante a vara parecia ter virado meu braço já que eu esboçava uma bravura sem tamanho. Meu braço parecia flutuar no ar procurando capturar a borboleta como se aquilo de fato, fosse decidir uma vida.
Ouvi um barulho como se um grande ventilador tivesse sido acionado no mundo. Um burburinho que começou lento, mas a pronto estava insuportavelmente inaudível, de tão alto.
— Minha nossa! Quantas!
Com dificuldade ouvi a voz dela que anunciava o enxame que se apoderaria de mim. E o tom de voz podia revelar que era tão mágico ou assustador ver aquilo acontecer que seu corpo todo se prostrou no silêncio. Foram segundos até que de um risco amarelo no breu, eu passasse a ver amarelidão.
As milhares de asas que batiam vindas do ventilador barulhento lá de cima batiam a minha volta, pelos cabelos, ouvidos, narinas, e pernas... Meu braço já não tinha o poderio de dominar ninguém. Eu seria tomada.
Vertigem... Ouvi o silêncio do barulho mais insuportável e doce que nunca poderia decifrar. As borboletas amarelas estavam entrando em mim: por todos os meus orifícios, pele adentro, dentro do meu corpo. Eu podia me sentir cheia daquelas coisas mexendo dentro de mim, como se minha carne estivesse viva. Já não pensava em mais nada. Eu apenas sentia.
Me sentia repleta, cheia, como se tivesse acabado de fazer uma refeição interior. Parecia renascer, parecia tomar outro corpo, entregar-me a...
Eu estava deitada, no fundo. No fundo do poço.
Quanto a outra Mim, eu não saberia falar. Podia sentir o fundo do meu corpo encostar no fundo do poço. E meu corpo estava novo. Inteiriçamente repleto, cheio... Eu estava lotada de borboletas por dentro e podia sentir elas se movendo, verdadeiramente, dando-me vida. Eu tinha me feito esperança. Ainda que nada visse, eu poderia acreditar no depois.
O burburinho ia se acalmando, e algumas borboletas, eu ainda podia vê-las riscando de amarelo um breu calado. Mas tudo estava bem. Foi como se o fundo do poço fosse o meu renascimento...

terça-feira, 11 de maio de 2010

4

'Capítulo Quarto - O fundo do poço'

O estrondo foi ainda maior quando as duas portas de ferro antigas se chocaram em alta velocidade. Eu podia avistar de dentro do Elevador que a família e Luiza, ao final do corredor, estavam bem assustadas com a minha atitude, que fora sem avisos e escandalosa. Mas eu estava mais segura. De certo, eu estava mais protegida. As portas estavam fechadas e ninguém ameaçava arrombá-las ou invadir ali, o meu espaço. Eu me sentia, enfim, a salvo.
Me concentrei uns segundos no meu coração -e pude perceber que ele ainda existia, ou pelo menos as batidas ainda estavam ali- e tudo pareceu mais calmo, de olhos fechados e sem ninguém ficava mais fácil me concentrar em mim. Mas foi que fechando o olho demais eu acabei ficando cega. Ou ao menos achei que perdi a visão, porque me lembro de abrí-los e não ver nada. Via só um esfumaçar de algo que eram imagens se esvaindo e preto. E um completo preto, e um breu. Um breu que acompanhava meu coração acelerado demais a ponto de realmente parar de acelerar, e parar de acelerar até parar de vez. E aí ficava breu total. Eu nem via, nem meu coração batia.
Eu estava no nada. Flutuava feito... nada. Me agarrei no Elevador porque ele era tudo que eu tinha. Me agarrei com as minahs mãos na parte da frente dele -nos portões enferrujados- e de tanta força que fiz a ferrugem grudou em mim. Acho que eu devia era ter ficado velha num segundo, velha e cega e morta, sem perceber.
Passavam segundos como horas e eu percebia que meu olho notava a presença de luz. Do teto, da frente -talvez nessa hora eu tenha até visto luz sair de dentro de mim- ...
Ia tentando tatear aquele manual de botões que agora não me serviam de prazer nenhum. Eram todos iguais, iguaizinhos, mas eu podia lembrar que o botão vermelho-sangue de emergência era diferente dos demais. A conversa com Luiza me deixara com ainda mais medo de tudo, mas como ali nada parecia mais estranho que eu, eu apertei o botão vermelho e logo percebi que algo estranho acontecia.
Senti uma pressão grande forçar minha cabeça abaixo que pensei que fosse morrer. Mas será que eu já não havia morrido? Eu já não sabia de mais nada. De fato a pressão prosseguiu até o nível do insuportável -e eu não sei como dimensionar isso- e o elevador, em queda vertiginosa me fez sentir uma das sensações mais assustadoras que se poderia imaginar. Eu não sentia meu coração bater, mas sentia coisas terríveis por dentro. Pelo pouco que eu me recordava de mim, cair no poço de um Elevador era pavor número 1.
Arrepiada de cabelos e poros, eu sentia que nada mais horrível eu poderia experimentar agora. Cega e sem coração, eu havia caído no posso do meu mundo.
Talvez fugir de Luiza tenha sido coisa muito grave.
Umidecido, molhado, embolorado, esquecido e velho. Nunca imaginei que um poço de elevador pudesse se assemelhar tão tatilmente a um poço de água. A um poço de fazenda de água. E pedras? Como uma parede de pedras veio parar aqui dentro?
Minhas mãos eram guias. Eu via através dos dedos, e entre eles eu pude notar que o poço do Elevador era pequeno mas parecia deslocado, em outro lugar, cheirava a matéria que o Elevador não era feita.
Parecia que minha mãe ia ter trabalho com meus tênis azul-marinho que já estavam encharcados e umidecidos de não-se-o-quê que estava naquele chão. Meus olhos foram desbravando a pouca luz até encontrar uma lâmpada, no canto, acesa e amarela.
E logo notei que uma certa 'presença' vinha de algum lugar dali... eu sabia que já não estava sozinha naquele fundo de poço.
— Então é mesmo você?
( As escuras ficava tão difícil de dar respostas...)
— Eu quem? Quem é você? Você pode me ver?
— Eu-Você. E essa cegueira fisíca é coisa só sua. É pra evitar os males maiores, as proporções catastróficas que as coisas podem tomar se os olhos avistarem o que não devem ver...
Essa resposta enfeitava minha escuridão de medos... Eu-Você? Que diabos ela queria dizer com isso? (E eu sabia que ela - do sexo feminino- deveria ser mulher e idosa pois a voz fraquejava e era fina de modo único.)
— Licença, mas a senhora tem nome?
— Nomes aqui já não importam mais. Nós somos a mesma pessoa. Em tempos diferentes. E é por esse motivo que você não pode me ver: eu sou você.
Então ela sou eu? Então eu vivo até ficar senhora? Então como eu sou, quando idosa? -e a vontade de me ver refletida nela, anos a frente, me faz odiar a cegueira como nunca- Então eu vivo no fundo do poço? Então esse é o final da linha, o fim do poço? É assim que termina minha vida?
— Mas calma, se acalme. Você quer se sentar aqui, na cadeira? Você está pálida. Isso, sente-se aqui. Segure aqui minha mão. Isso, aqui. Pronto. Busco um copo de água com uma pitada de sal que sei que é isso que te faz bem.
Nesse momento eu já não conseguia direito distinguir coisas. Os últimos dias -seriam sido dias?- tinham uma estranheza muito familiar. Tentei naquele segundo que a aguardava, sentada na cadeira, refletir sobre os últimos acontecimentos e esvaziar meu baú de perguntas. Eu estava cheia delas. E sabia, que para mim, perguntas de mais nunca eram sinal de boa coisa.
— Levante a lingua. Isso. Agora engole a água de vez. Sente-se melhor? Pois já está até mais coradinha.
(Ouvi risos de um afeto tal que minha mãe demonstrava por mim quando me via protegida, feliz ou saudável.)
— É bom começar te dizendo que esse não é o final da vida. É apenas o fundo do poço. E é aqui que eu moro, há exatos muitos anos, lendo, cozinhando, respirando e vivendo.
E foi ai que parei pra reparar que fazia sentido. Afinal das contas, o fundo do poço não podia ser tão ruim se alguém morasse nele...
— E como a senhora foi parar aqui?
— Você pode parar de me chamar de senhora?
— E você pode parar de me chamar de você?
Acho que fiquei tão exaltada com todas as descobertas do dia que falei mais alto do que devia. Aquela 'senhora' -que era eu, e que estranho era admitir isso- não andava muito bem, pois foi só ouvir uma voz mais alta pra cair num choro só.
— Eu estou muito afastada! A tempos não vejo a gente, sabe! Fico aqui, lendo as coisas antigas e comendo o quanto posso, mas a tempos não relembro da gente! Já nem sei como te chamar... Ando tão afastada da gente pequena, da gente menor... Lembra da gente miúda? No colo da mãe e dos irmãos? Ou fazendo arte pela casa? Lembra do sorriso que a gente tinha? Ái que saudade da gente!
Confesso que eram muitas coincidências pra aquele ser um episódio imaginário ou fruto de um sonho. Aquela senhora - que era eu - sabia realmente de detalhes muito pequenos de mim. Colo de mãe, minha Arte, meu grande sorriso... Agora sim; agora sim eram evidências demais para negar.
— Você pode me contar como é que veio parar aqui?
E eu percebi por aqueles olhos que ela tinha algo muito misterioso pra contar.
— A vontade move mundos, Renata. Desde que nos conheço por gente, abriga essa vontade de fundo do poço. E há exatos 17, de tanto pedir, eu vim parar aqui.
"Vontade de fundo poço" é uma frase que ela disse de forma tal pra eu nunca mais me esquecer.
— E fui crescendo, evoluindo, amadurecendo, como sempre, pois a evolução é o percurso natural da vida. Quando eu caí aqui eu pensava que a vida ia perder totalmente o sentido. Era o fundo do poço. Mas o mundo, o tempo das coisas da vida me provou que esse não era o fim dele. Aqui é como um lugar qualquer. Essas metáforas que dizem aí afora são apenas pra criar um universo que não existe. Guarde isto pra você. Vivo uma vida tal como lembro viver em qualquer canto de paredes e cama. É aqui que eu moro e amo. Amo minha casa. Esperava sua visita há tempos. Não sabia quando você viria, mas sabia que ainda que eu aguardasse a vida inteira, ia ver você de novo. E dessa vez, sem ser no reflexo de um espelho...
E nesta hora me ocorreu porque motivo a cegueira só me atingia e não atingia a ela.
— Porque você pode me ver, e eu não?
— Faz-me perguntas demasiado. Não mudarás nada. Mas vai perguntar para paredes e fotografias... Lá estou eu falando demais! Bem, posso te ver pelo mesmo motivo que não podes me ver. É uma revelação. É a respeito de algo que acontece depois daqui. Depois deste encontro. Pense um pouco.
Foi neste momento que minhas mãos notar onde eu estava. Elas foram caminhando as paredes de pedras e tateando cada reentrância que encontravam. Em algum momento, pude sentir que uma série de cabos de madeira, em tamanhos variados estavam pendurados na parede e amarrados a teias de tecido, tal como uma espécie de vara. E naquela hora eu tive a impressão de que eu poderia ter virado uma louca ou um ser muito estranho que praticava tortura nos outros. Não fazia sentido os cabos de madeira. Eles me remetiam a torturas humanas. Será que ela encapuzava as vítimas nas teias de tecido e fazia tudo as escuras? A sensação daquele pensamento foi de apavorar.
— Er... E quanto a esses cabos de vassoura, para que servem?
— Sinto que nem vai ser necessário te explicar! Olha pra cima, lá vem ela! Lá vem ela!
Acho que era tanta a excitação que ela sentia que nem pôde se recordar de que eu estava cega, totalmente cegueta, mas quando olhei pra cima, me deparei com uma luz tão intensa que posso jurar ter visto algo flutuando pelos ares, de um lado para o outro. Acho que era uma borboleta. Uma borboleta amarela.
— Vai! Toma isto aqui! Essa é uma vara de pescar borboletas! Ai meu deus, a quanto tempo eu espero por isso! Tenho que pegar ela, veja como ela brilha de tão amarela! Vamos, toma, pegue depressa e pesque-a!

3

'Capítulo Terceiro - Eu perdi o andar 3'

Desde a primeira vez que pisei no Elevador, eu sabia que ele conservara algo de misterioso que eu não queria decifrar. A temporalidade das coisas – coisas essas que pareciam estar acontecendo comigo- estava cada vez mais confusa, e eu não sabia mais como distinguir o sonho da realidade.
Naquele dia –em que a espera fez sentido- eu fiquei ali, parada, plasmada naquele corredor 2 olhando aquele encontro sem cansar os olhos. De repente reparei que via entorno aquela visão uma moldura, quase como se aquela imagem fosse uma pintura, ou uma fotografia... era uma forma muito bonita de imaginar e enquadrar uma família feliz. Percebi que meu rosto estava quente, e dava-me conta de que o corredor parecia estar rodeado de chamas, chamas de fogo, que ardiam em uma excitação feliz, uma alegria movimentada. O tempo, parecia passar, e lá pelas tantas eu já estava muito sonolenta. Resolvi me aproximar mais à frente –ainda que essas noções me parecessem confusas aos olhos- e deitar-me numa cama que parecia não se escorar em móvel algum. Cama essa que parecia pedir por alguém com sono. Dali, deitada no macio travesseiro e sob o colchão florido de azul, de perto eu via acontecer a família, sem que ninguém me notasse... E, antes que eu percebesse, havia adormecido aos braços de Morpheu.
- Rê? Você está se sentindo bem?
- Hum.. Mas quem é você? E como sabe meu nome?
Acabava de acordar de um sono pesado e sentia dores de cabeça. Não estava ententendo nada.
- A verdade é que eu sei muito mais que seu nome.
- Você pode me explicar melhor? Da onde você vem? Estou muito confusa.
- Calma, olha, a verdade é que eu não precisaria te dar todas essas explicações se você não perdesse a hora. Esse sono está além do limite, você ficou dormindo aí não sei quanto tempo que perdeu o horário do terceiro andar.
- Er.. Mas como assim, horário do terceiro andar?
Nessa hora, eu mal podia acreditar nas coisas que ouvia. Primeiro, quis me certificar de que aquilo não era um sonho. Mas percebi que não tinha como fazer isso. Depois, tomei consciência de que alguém no mundo, além de mim, sabia da realidade das coisas minhas... ou seria o Elevador coisa do mundo? E mais, o Elevador funcionava com horário. Haviam regras, horas. Meu mundo estava de cabeça para o ar. Que coisa.
- É, Rê, não se faça assim de tão inconsciente né? No fundo eu e você sabemos que você sabe dessas coisas todas! – e baixinho sussurrou: Mais tens mais preguiça que bicho-preguiça, não é mesmo?
Aquela voz estava me dando nos nervos! Quem era ela para invadir o meu espaço, o meu mundo, mundo meu, das pequenas e maravilhosas coisas, detalhes que só eu enxergava e questionar minhas limitações?
- Já que insiste em não insistir em você, eu digo: sou a Luiza, sua grande amiga que dividiu com você momentos de grande importância.
- A Luiza? Que Luiza?
(Eu realmente parecia não me lembrar de nenhuma Luiza.)
- É que você adora ficar sozinha sabe. Na verdade, Rê, você gosta de falar isso por ai. Mas você não gosta não, você gosta mesmo é de gente. E não me venha com Luiza não hein, que você sempre me chamou de Lu. E me encheu de carinhos. E de uns desagrados desnecessários. Mas passou, confesso. O que acontece é que eu sei dessas coisas todas porque resolvi não vir pra cá sabe, achei isso tudo muito radical. Essa coisa de tratamento intensivo, reclusão social, achei muito ‘capital’. Preferi abrir os olhos e enxergar o que já estava posto nu na minha frente. E você quase conseguiu também. Mas veio aquela história de alma artística e te deixou pra baixo de novo....
Alma artística? Pra baixo de novo? Acho que estava conhecendo um lado meu que antes não imaginaria. Eu estava tão atordoada que sentia meu coração acelerar como o de uma lebre. De fato, realizei que primeiro precisava me acalmar. Luiza falava com tanta convicção que me peguei acreditando naquelas coisas todas de ela e de mim.
- Então me conte mais da minha alma artística...
- Então, foi aquela sua que te acompanhou por toda a sua vida, meneando a sua cabeça pra baixo e te deixando em constante frustração. Você nunca quis abandoná-la mas eu sempre percebi que tinha algo errado. Você gostava muito de sofrimento sabe? Era estranho pra burro porque você tinha um sorriso e tanto... Mas ai que você foi levando a vida nessa ‘alma artística’ e não parou de sofrer. E esqueceu de viver. E te deram um tratamento intensivo pós-vida. Ou pós-morte, acho que dá no mesmo essa denominação né? – e soltou um riso arcaico de canto de boca a dar calafrios na minha espinha-.
E foi nessa hora que eu não pude me conter. Quer dizer que eu estava morta? E que havia alguém me mandando pra um tratamento intensivo pós-vida (ou seria pós-morte)? Essa é alguma espécime de psicologia do paraíso? Ou eu estou no inferno?
Milhões de perguntas borbulharam na minha mente e eu simplesmente não podia agüentar o que meu coração sentia. Ou será que eu nem tinha mais meu coração? Será que eu ainda tinha a mim?
E num instante de esperteza, eu reparei que toda a conversa ocorrera sobre a cama, enquanto ‘Luiza’ sentada aos pés dela, conversava me olhando deitada com a cabeça próxima a cabeceira. Esperei que ela desviasse o olhar ao redor e fui, num pulo urgente, fora da cama e derrubando todos os móveis e brinquedos empilhados, causando um baita de um desastre. Correndo o mais rápido que pude, avistava a porta do Elevador distante, e o medo e a curiosidade do depois já eram tão grandes que nem cabiam em mim. Aliás, de que mim é esse que eu estou falando?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

2

'Capítulo Segundo - A Espera'

'Só mesmo um tranco desses pra me acordar.' Esses remédios controlados me deixam com um sono tão acumulado e pesado, que qualquer parede que me recosto vira canto pra me recolher e dormir. Eu devia estar tão cansada hoje que nem percebi que descansava na cadeira verde-musgo a muito tempo desocupada. Não sei nem como fui parar sentada aqui. Estranho. Parece que o andar 1 está com o botão travado. Mas tudo bem, como já disseram outros, é preciso dar continuidade as coisas.
Algum tempo depois de apertar o botão 2 -e que prazer o apertar dos botões me faz sentir-, algumas viagens na minha cabeça e recordações imaginárias, a porta se abriu. Gosto do som que escuto quando empurro os portões enferrujados e da sensação de pisar no chão pela primeira vez.
Dessa vez meu pé pinica porque o carpete verde-escuro já está velho e sujo. E ele cheira a muitas coisas. Cheira a brincadeiras e histórias. Tudo me parece muito familiar, e a sensação que a pele sente é de ambiente natural, de habitat. Sinto que como nunca antes, já estive aqui. O corredor vai ficando cada vez mais largo a cada passo que embrenho-me, e vão surgindo coisas que eu sei que já vi outrora. Milhões de coisas materiais, coisas materiais demais, coisas que foram me confundindo a cabeça. Dois passos adentro do corredor e já haviam muitas coisas o suficiente para tocar o teto. E foi só fechar os olhos por alguns instantes para ver a mente clarear e começar a enxergar por detrás daquela montanha de coisas.
Por detrás de um monte de móveis antigos e brinquedos – muitas coisas demais- eu vi uma família. Gente que notavelmente esperava no final do corredor. Eram 5, eles. Um homem e uma mulher mais velhos, ela loira, ele moreno de pele clara e três novos meninos. Um loirinho de olhos azuis, um moreno de pele clara que muito se parecia com o pai e um, o mais velho que muito parecia ser dono de todos os outros irmãos.
Eles estavam lá, atrás de todos aqueles móveis e brinquedos, abraçados, e sorriam muito, e pareciam à espera de algo ou alguém. (Penso que pela emoção que exalava o olhar era uma pessoa muita querida que estava pra chegar.)
Fui caminhando vagarosamente, passo a passo, três e quatro, sem fazer estardalhaço, -já que os móveis estavam equilibrando-se uns nos outros- qualquer movimento errado ia levá-los ao chão. Meu olhar estava trêmulo tal como minha mão e respiração e a cada passo dado, cada segundo mais próximo deles eu mais temia tudo: Era aquilo real? Eles me fariam bem ou mal? Quem eles estavam esperando? O que viria a seguir?
Em disparate, jogando tudo pro ar, eis que surge, correndo, em um vestido cor-de-rosa uma menininha morena, de cabelos negros e ondulados, presos ao alto da cabeça. Ela sorria muito e cantarolava algo que não me recordo agora, e passou por mim tão depressa que nem sequer reparou que eu também estava ali.
E ela foi direto ao encontro daquela gente que esperava.
Naquele momento eu tive certeza, que se não fosse ela que eles esperavam; a espera não tinha mais sentido para mim.

sábado, 17 de abril de 2010

1

'Capítulo Primeiro - O andar 1'

É um solavanco e tanto que paralisa o Elevador. O barulho de portão de ferro-enferrujado parece sinfonia debussyana aos meus ouvidos. Eu não tenho pressa do que virá, cada minuto dentro daquele cubículo protetor é simplesmente a vida, plenamente. Contrária a mim, como sempre, eu ponho pra fora o pé esquerdo. E de esquerdo eu adentro o primeiro andar. Avisto de pronto um corredor grande (e breve) e posso sentir um cheiro de coisa muito antiga. O odor está em todas as partes, do teto ao chão. Parece até que esse odor tinha tomado conta de mim. O corredor é quente, imensamente abrasador, de paredes bege ou creme, e há um carpete vermelho-vivo no chão. O escapamento de canos e a parte elétrica desse andar está toda a mostra. Nas paredes caminham linhas vermelhas e azuis sendo as pretas em menor quantidade, no entanto, mais grosseiras. No fim dele, lá no fim eu avisto a porta 1.
Da porta 1 soa um ruído. Desses que não costumam me agradar aos ouvidos. Um desses ruídos que me convida a entrar, mas enche meu imaginário de medos. O barulho é alto, som de porta emperrada, que entreabre-se a mim e com toda a certeza do universo (que me toma em instantes) eu sei que devo adentrá-la. De lá surge uma luz. Pequena faixa de luz, suave e difusa. Sou guiada por ela e até ela eu vou.
Os passos que me seguem a seguir são os mais calmos que eu já pude caminhar. Sinto que meu olho vai registrando cada minúcia que vê e ainda que eu saiba da luz no final do corredor eu não posso correr. Cada passo fica mais quente. E tudo parece, a cada pé, mais íntimo. Mais protetor. Antes que eu pudesse notar que minha vista, já embassada, confundia os fios vermelhos com os azuis, eu reparava que o teto ia ficando mais alto, e minha proximidade de meus pés diminuía. Estava cada vez mais quente, mais quente e quase infernal. Quando nem mais pude me notar, eu estava me contorcendo em mim de modo a me proteger de tanto calor e tanta confusão. Restava um mínimo de consciência do que eu era – ou do que eu havia sido a alguns minutos atrás - e ali, a dois segundos da luz, um choro imenso saiu de dentro de mim, agudo e pesado, libertado e dolorido. Incontido. Uma mão, nitidamente feminina, unhas grandes, pele grossa e machucada, me acolheu – sim, nesse momento eu já cabia nas mãos de não-sei-quem- e meu choro ecoava até o final do corredor. Via o Elevador, com olhos que não sei quais eram. O Elevador estava lá, parado, a me esperar.
“Fecharam as portas” – era a única coisa que eu podia pensar já que o ruído acontecia novamente e o calor já não mais existia. E eu não via mais o Elevador. Por um momento, me senti cega, pois tudo que eu via era muito difícil de sentir ou explicar para mim. Chegava agora a sentir frio, não sei de que maneira eu tinha chegado a ficar nua, mas já não tinha importância a nudez ou o tecido. Eu via o rosto que me segurava com as mãos mas não conseguia decifrá-lo. Era como uma grande massa de mistério, era como o incodificável, o secreto.
O rosto, imenso e que da boca soprou um suspiro congelado, estava agora a um segundo de me devorar, ali, na desumana situação em que eu me encontrava, pequena e desamparada, quiçá minúscula do tamanho de grão de arroz. Percebi que no instante do retomar de uma consciência humana -do que fosse que acontecera naquele corredor, porta e primeiro andar- ela já se esvaia junto comigo, simultaneamente, e já de mim nada restava, eu estava reduzida a fumaça. Só existia a leve impressão de que a última coisa que eu sentira nesse mundo das sensações era meu corpo sendo levado em direção a escuridão congelada daquela garganta...

A Menina e o Elevador

Cada andar que eu me atrevo a entrar, eis meu fardo. O Elevador, partindo do térreo 7andares acima, é uma surpresa constante. A cada andar, eu mudo. O Elevador, também.
Eu sou a menina do Elevador, daquele antigo e cheio de mistérios. Por algum motivo óbvio, ninguém o toma. Dizem que é assustador com suas portas antigas – e enferrujadas – e almofadadas paredes. Vejo-o como a perfeição. Perfeito em seu desuso, perfeito na capacidade de levar alguém a algum lugar. Ninguém se arrisca a tomá-lo porque também ele faz muito barulho e porque anda se deteriorando. Os farelos de construção antiga prestes a ruir caem do teto a cada andar que ele para. Isso tudo me soa naturalmente parte de mim. Nada me parece estranho, pelo contrário, o Elevador e tudo que o envolve é encantador.
Eu o tomo sempre de maneira ritual. Em saias envelope azul-céu (às vezes poderia jurar que vejo nuvens nela), numa blusa branca-amarelada em tecido molinho que fica embaixo do meu colete-moletom que está bem velhinho. São todas peças antigas, que eu comprei em algum brechó que me rendeu muita satisfação, já que minhas roupas antes mesmo de mim, estão cheias de histórias. Meus tênis azul-marinho está completamente desbotado e a sola e os cadarços estão aos pedaços. Está tudo se desintegrando em mim. A cada andar.
Os botões são lindos. Robustos. O apertar dos botões é um prazer inigualável já que pressioná-los parece não ter vim. E estão rígidos, parecem até em algum momento relutarem contra meu dedo. Alguns andares eu via meu indicador se marcar com a circunferência do botão. Era uma dor confortável. Era necessário sentí-la para continuar subindo.
No canto esquerdo do Elevador fica uma cadeira de assentos verde-musgo desbotados que parece a muito tempo em desuso. O botão vermelho-sangue de emergência – e aí eu me pergunto porque vermelho-sangue – é maior que todos os outros e fica logo embaixo do interfone. O interfone não funciona. É só se concentrar um pouco para notar que os fios derreteram por um motivo qualquer. Andar no Elevador é de certo, viver. Sem segundas chances, sem interfone, apenas da forma que a vida deve ser.
Gosto de entrar no Elevador e ficar no canto direito, com a sombrinha apoiada no chão. Nunca entra outra pessoa no Elevador, e eu sei que isso está longe de acontecer. Gosto de ficar sozinha. Passar pela experiência de experimentar sozinha me agrada.