segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

6

‘Capítulo Sexto – Um novo sentido’

Parecia apagado. Não parecia mais breu, ausência... Mas como se tivessem desligado a luz. Os riscos de cor eu já não podia identificar – o que me fazia pensar que as borboletas que ficaram flutuando estavam indo embora – e o som, era pouco e quase inexistente. Tinha um som ambiente que parecia muito longe de mim, distante, mas ainda presente.
A Renata do outro tempo parecia ter ido embora. Eu não percebia sua presença ao meu lado. Era como se ela tivesse se apagado do fundo do poço, como se não houvesse mais ninguém morando por lá. Nem mesmo eu podia sentir a presença das fotografias ou de qualquer coisa que eu sentia antes. Parecia ser só eu e o espaço parado, e o tempo, lentamente, passando...
Meus sentidos se intensificam cada vez mais, na escuridão da luz, a ponto de as pedras embaixo das minhas costas ficarem cada vez mais grossas.
Por mais incômodo que fosse, eu estava gostando de ficar lá.
— Acendam as luzes!
Ouvi uma voz que gritava do alto, ordenando e imediatamente sendo atendida. As luzes foram acesas tal como de um disjuntor que acende os holofotes de um campo de futebol. Por mais cega que eu estivesse, senti que as luzes iluminavam a mim.
Um movimento brusco começou no meu estômago, tal como uma revolta. Era como se as borboletas amarelas tivessem todas, ao mesmo tempo, movimentando-se para fora de mim. Podia sentir o esforço das asas para empurrar minha barriga pra cima, e logo, meus braços também pareciam um borbulhar de asas... Todas se mexiam, sincronicamente, expulsando meu corpo do chão e erguendo-o em direção a luz, que a cada milímetro de altura, ficava mais branca.
Meus pés pareciam criar asas, e por mais que eu quisesse me desesperar, eu não podia. Era como se sentisse-me parte daquele movimento, era como se eu o comandasse, como se eu quisesse! Borboletas pelo meu corpo todo!
E minha cabeça, pesada, pesada demais... Senti uma reviravolta tomar toda minha cabeça para levantá-la, com uma determinação e força imensas, coisa que eu nunca senti igual. Meus olhos estavam cheios de borboletas... E segundos depois, eu já não mais sentia as pedras grossas do chão. Meu corpo levitava, com esforço... Só podia sentir o vácuo que abrigava aquele lugar, um vácuo gelado, e a cada milímetro erguida mais acima o fundo do poço tornava-se um vácuo mais quente.
Estava em mim. Inteiramente integrada no meu corpo e mente de uma forma tal que não consigo me recordar ter acontecido antes. Eu flutuei, não sei quanto tempo ou quão longo percurso, mas estava me erguendo em direção a luz. Sentia todo o ânimo dominar meu corpo, e leve, calma, consciente, eu estava bem. Sabia que dali ia surgir um novo começo. Era como dançar para mim, era como brilhar no palco que eu ensaiei para ver acontecer. Eu estava no meu domínio completo, entregue, atenta. Podia sentir como nunca antes...

[Era como ver um truque de mágica. Renata parecia levitar...]


A luz me tragou.
Fora um instante tão repentino que eu nem poderia tentar decifrar o que acontecera.. Foi como ser sugada pelo meio de um redemoinho, sem ter direito a contestação, foi como estar à beira do precipício e sem aviso, sem empurrada para dentro dele. A luz me tomou de maneira que minha consciência sequer fez parte de mim, não pude ao menos notar... Era enquanto eu flutuava na minha existência. A luz intensa me tragou e me trouxe até aqui. Esse estágio profundo de sono.

Uma cama.
Dentro do quarto 276, Renata descansa. Seu corpo está parado, completamente estirado na cama, o que de fato, não é o comportamento esperado durante o sono agitado que costumeiramente ela apresenta. Suas pálpebras estão se movendo de maneira que podemos concluir que os olhos se mexem de um lado para o outro, ativos. O ventilador está barulhento. E não está funcionando direito, o quarto está abafado.
Renata está num sono que já dura mais de 8 horas, e é provável que esteja próximo da hora de ela acordar. O dia já esboça a manhã, e hoje, segunda-feira, ela freqüenta sua faculdade de filosofia.
O sonho não representa a temporalidade real, logo, um sonho pode parecer durar uma vida inteira. Falo de sonhos porque Renata é uma sonhadora, no sentido denotativo da palavra, visto que desde sua infância não há um dia sequer que o sono venha sem um sonho. Para ela não é novidade ver a “realidade” desapontando as leis da física, mas por mais assídua que seja no assunto, os sonhos ainda a atormentam como pesadelos infantis.
Voltando às pálpebras, eu nunca havia notado como elas ficam enquanto ela dorme. Será que tem algo de errado nisso? O movimento parece tão contínuo que dá a impressão que estão voltando o mesmo filme em determinado momento, sem parar. Lupping, acho que é assim que chamam... Um eterno retorno naquele ponto, recomeçando de novo a todo momento.
Deixa estar. Talvez a culpa seja mesma minha.
Acho que é hora de retomar a consciência...

[Renata está presa no vácuo branco.]

domingo, 20 de fevereiro de 2011

5

'Capítulo Quinto – A esperança é amarela'

— Ora, vamos! Mais depressa! Depressa que elas são rápidas! Danadinhas que me escapam a alma!
E numa cegueira incômoda, vendo o que eu não via, eu podia sentir uma presença amarela, e por um instante a vara parecia ter virado meu braço já que eu esboçava uma bravura sem tamanho. Meu braço parecia flutuar no ar procurando capturar a borboleta como se aquilo de fato, fosse decidir uma vida.
Ouvi um barulho como se um grande ventilador tivesse sido acionado no mundo. Um burburinho que começou lento, mas a pronto estava insuportavelmente inaudível, de tão alto.
— Minha nossa! Quantas!
Com dificuldade ouvi a voz dela que anunciava o enxame que se apoderaria de mim. E o tom de voz podia revelar que era tão mágico ou assustador ver aquilo acontecer que seu corpo todo se prostrou no silêncio. Foram segundos até que de um risco amarelo no breu, eu passasse a ver amarelidão.
As milhares de asas que batiam vindas do ventilador barulhento lá de cima batiam a minha volta, pelos cabelos, ouvidos, narinas, e pernas... Meu braço já não tinha o poderio de dominar ninguém. Eu seria tomada.
Vertigem... Ouvi o silêncio do barulho mais insuportável e doce que nunca poderia decifrar. As borboletas amarelas estavam entrando em mim: por todos os meus orifícios, pele adentro, dentro do meu corpo. Eu podia me sentir cheia daquelas coisas mexendo dentro de mim, como se minha carne estivesse viva. Já não pensava em mais nada. Eu apenas sentia.
Me sentia repleta, cheia, como se tivesse acabado de fazer uma refeição interior. Parecia renascer, parecia tomar outro corpo, entregar-me a...
Eu estava deitada, no fundo. No fundo do poço.
Quanto a outra Mim, eu não saberia falar. Podia sentir o fundo do meu corpo encostar no fundo do poço. E meu corpo estava novo. Inteiriçamente repleto, cheio... Eu estava lotada de borboletas por dentro e podia sentir elas se movendo, verdadeiramente, dando-me vida. Eu tinha me feito esperança. Ainda que nada visse, eu poderia acreditar no depois.
O burburinho ia se acalmando, e algumas borboletas, eu ainda podia vê-las riscando de amarelo um breu calado. Mas tudo estava bem. Foi como se o fundo do poço fosse o meu renascimento...