terça-feira, 11 de maio de 2010

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'Capítulo Quarto - O fundo do poço'

O estrondo foi ainda maior quando as duas portas de ferro antigas se chocaram em alta velocidade. Eu podia avistar de dentro do Elevador que a família e Luiza, ao final do corredor, estavam bem assustadas com a minha atitude, que fora sem avisos e escandalosa. Mas eu estava mais segura. De certo, eu estava mais protegida. As portas estavam fechadas e ninguém ameaçava arrombá-las ou invadir ali, o meu espaço. Eu me sentia, enfim, a salvo.
Me concentrei uns segundos no meu coração -e pude perceber que ele ainda existia, ou pelo menos as batidas ainda estavam ali- e tudo pareceu mais calmo, de olhos fechados e sem ninguém ficava mais fácil me concentrar em mim. Mas foi que fechando o olho demais eu acabei ficando cega. Ou ao menos achei que perdi a visão, porque me lembro de abrí-los e não ver nada. Via só um esfumaçar de algo que eram imagens se esvaindo e preto. E um completo preto, e um breu. Um breu que acompanhava meu coração acelerado demais a ponto de realmente parar de acelerar, e parar de acelerar até parar de vez. E aí ficava breu total. Eu nem via, nem meu coração batia.
Eu estava no nada. Flutuava feito... nada. Me agarrei no Elevador porque ele era tudo que eu tinha. Me agarrei com as minahs mãos na parte da frente dele -nos portões enferrujados- e de tanta força que fiz a ferrugem grudou em mim. Acho que eu devia era ter ficado velha num segundo, velha e cega e morta, sem perceber.
Passavam segundos como horas e eu percebia que meu olho notava a presença de luz. Do teto, da frente -talvez nessa hora eu tenha até visto luz sair de dentro de mim- ...
Ia tentando tatear aquele manual de botões que agora não me serviam de prazer nenhum. Eram todos iguais, iguaizinhos, mas eu podia lembrar que o botão vermelho-sangue de emergência era diferente dos demais. A conversa com Luiza me deixara com ainda mais medo de tudo, mas como ali nada parecia mais estranho que eu, eu apertei o botão vermelho e logo percebi que algo estranho acontecia.
Senti uma pressão grande forçar minha cabeça abaixo que pensei que fosse morrer. Mas será que eu já não havia morrido? Eu já não sabia de mais nada. De fato a pressão prosseguiu até o nível do insuportável -e eu não sei como dimensionar isso- e o elevador, em queda vertiginosa me fez sentir uma das sensações mais assustadoras que se poderia imaginar. Eu não sentia meu coração bater, mas sentia coisas terríveis por dentro. Pelo pouco que eu me recordava de mim, cair no poço de um Elevador era pavor número 1.
Arrepiada de cabelos e poros, eu sentia que nada mais horrível eu poderia experimentar agora. Cega e sem coração, eu havia caído no posso do meu mundo.
Talvez fugir de Luiza tenha sido coisa muito grave.
Umidecido, molhado, embolorado, esquecido e velho. Nunca imaginei que um poço de elevador pudesse se assemelhar tão tatilmente a um poço de água. A um poço de fazenda de água. E pedras? Como uma parede de pedras veio parar aqui dentro?
Minhas mãos eram guias. Eu via através dos dedos, e entre eles eu pude notar que o poço do Elevador era pequeno mas parecia deslocado, em outro lugar, cheirava a matéria que o Elevador não era feita.
Parecia que minha mãe ia ter trabalho com meus tênis azul-marinho que já estavam encharcados e umidecidos de não-se-o-quê que estava naquele chão. Meus olhos foram desbravando a pouca luz até encontrar uma lâmpada, no canto, acesa e amarela.
E logo notei que uma certa 'presença' vinha de algum lugar dali... eu sabia que já não estava sozinha naquele fundo de poço.
— Então é mesmo você?
( As escuras ficava tão difícil de dar respostas...)
— Eu quem? Quem é você? Você pode me ver?
— Eu-Você. E essa cegueira fisíca é coisa só sua. É pra evitar os males maiores, as proporções catastróficas que as coisas podem tomar se os olhos avistarem o que não devem ver...
Essa resposta enfeitava minha escuridão de medos... Eu-Você? Que diabos ela queria dizer com isso? (E eu sabia que ela - do sexo feminino- deveria ser mulher e idosa pois a voz fraquejava e era fina de modo único.)
— Licença, mas a senhora tem nome?
— Nomes aqui já não importam mais. Nós somos a mesma pessoa. Em tempos diferentes. E é por esse motivo que você não pode me ver: eu sou você.
Então ela sou eu? Então eu vivo até ficar senhora? Então como eu sou, quando idosa? -e a vontade de me ver refletida nela, anos a frente, me faz odiar a cegueira como nunca- Então eu vivo no fundo do poço? Então esse é o final da linha, o fim do poço? É assim que termina minha vida?
— Mas calma, se acalme. Você quer se sentar aqui, na cadeira? Você está pálida. Isso, sente-se aqui. Segure aqui minha mão. Isso, aqui. Pronto. Busco um copo de água com uma pitada de sal que sei que é isso que te faz bem.
Nesse momento eu já não conseguia direito distinguir coisas. Os últimos dias -seriam sido dias?- tinham uma estranheza muito familiar. Tentei naquele segundo que a aguardava, sentada na cadeira, refletir sobre os últimos acontecimentos e esvaziar meu baú de perguntas. Eu estava cheia delas. E sabia, que para mim, perguntas de mais nunca eram sinal de boa coisa.
— Levante a lingua. Isso. Agora engole a água de vez. Sente-se melhor? Pois já está até mais coradinha.
(Ouvi risos de um afeto tal que minha mãe demonstrava por mim quando me via protegida, feliz ou saudável.)
— É bom começar te dizendo que esse não é o final da vida. É apenas o fundo do poço. E é aqui que eu moro, há exatos muitos anos, lendo, cozinhando, respirando e vivendo.
E foi ai que parei pra reparar que fazia sentido. Afinal das contas, o fundo do poço não podia ser tão ruim se alguém morasse nele...
— E como a senhora foi parar aqui?
— Você pode parar de me chamar de senhora?
— E você pode parar de me chamar de você?
Acho que fiquei tão exaltada com todas as descobertas do dia que falei mais alto do que devia. Aquela 'senhora' -que era eu, e que estranho era admitir isso- não andava muito bem, pois foi só ouvir uma voz mais alta pra cair num choro só.
— Eu estou muito afastada! A tempos não vejo a gente, sabe! Fico aqui, lendo as coisas antigas e comendo o quanto posso, mas a tempos não relembro da gente! Já nem sei como te chamar... Ando tão afastada da gente pequena, da gente menor... Lembra da gente miúda? No colo da mãe e dos irmãos? Ou fazendo arte pela casa? Lembra do sorriso que a gente tinha? Ái que saudade da gente!
Confesso que eram muitas coincidências pra aquele ser um episódio imaginário ou fruto de um sonho. Aquela senhora - que era eu - sabia realmente de detalhes muito pequenos de mim. Colo de mãe, minha Arte, meu grande sorriso... Agora sim; agora sim eram evidências demais para negar.
— Você pode me contar como é que veio parar aqui?
E eu percebi por aqueles olhos que ela tinha algo muito misterioso pra contar.
— A vontade move mundos, Renata. Desde que nos conheço por gente, abriga essa vontade de fundo do poço. E há exatos 17, de tanto pedir, eu vim parar aqui.
"Vontade de fundo poço" é uma frase que ela disse de forma tal pra eu nunca mais me esquecer.
— E fui crescendo, evoluindo, amadurecendo, como sempre, pois a evolução é o percurso natural da vida. Quando eu caí aqui eu pensava que a vida ia perder totalmente o sentido. Era o fundo do poço. Mas o mundo, o tempo das coisas da vida me provou que esse não era o fim dele. Aqui é como um lugar qualquer. Essas metáforas que dizem aí afora são apenas pra criar um universo que não existe. Guarde isto pra você. Vivo uma vida tal como lembro viver em qualquer canto de paredes e cama. É aqui que eu moro e amo. Amo minha casa. Esperava sua visita há tempos. Não sabia quando você viria, mas sabia que ainda que eu aguardasse a vida inteira, ia ver você de novo. E dessa vez, sem ser no reflexo de um espelho...
E nesta hora me ocorreu porque motivo a cegueira só me atingia e não atingia a ela.
— Porque você pode me ver, e eu não?
— Faz-me perguntas demasiado. Não mudarás nada. Mas vai perguntar para paredes e fotografias... Lá estou eu falando demais! Bem, posso te ver pelo mesmo motivo que não podes me ver. É uma revelação. É a respeito de algo que acontece depois daqui. Depois deste encontro. Pense um pouco.
Foi neste momento que minhas mãos notar onde eu estava. Elas foram caminhando as paredes de pedras e tateando cada reentrância que encontravam. Em algum momento, pude sentir que uma série de cabos de madeira, em tamanhos variados estavam pendurados na parede e amarrados a teias de tecido, tal como uma espécie de vara. E naquela hora eu tive a impressão de que eu poderia ter virado uma louca ou um ser muito estranho que praticava tortura nos outros. Não fazia sentido os cabos de madeira. Eles me remetiam a torturas humanas. Será que ela encapuzava as vítimas nas teias de tecido e fazia tudo as escuras? A sensação daquele pensamento foi de apavorar.
— Er... E quanto a esses cabos de vassoura, para que servem?
— Sinto que nem vai ser necessário te explicar! Olha pra cima, lá vem ela! Lá vem ela!
Acho que era tanta a excitação que ela sentia que nem pôde se recordar de que eu estava cega, totalmente cegueta, mas quando olhei pra cima, me deparei com uma luz tão intensa que posso jurar ter visto algo flutuando pelos ares, de um lado para o outro. Acho que era uma borboleta. Uma borboleta amarela.
— Vai! Toma isto aqui! Essa é uma vara de pescar borboletas! Ai meu deus, a quanto tempo eu espero por isso! Tenho que pegar ela, veja como ela brilha de tão amarela! Vamos, toma, pegue depressa e pesque-a!

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'Capítulo Terceiro - Eu perdi o andar 3'

Desde a primeira vez que pisei no Elevador, eu sabia que ele conservara algo de misterioso que eu não queria decifrar. A temporalidade das coisas – coisas essas que pareciam estar acontecendo comigo- estava cada vez mais confusa, e eu não sabia mais como distinguir o sonho da realidade.
Naquele dia –em que a espera fez sentido- eu fiquei ali, parada, plasmada naquele corredor 2 olhando aquele encontro sem cansar os olhos. De repente reparei que via entorno aquela visão uma moldura, quase como se aquela imagem fosse uma pintura, ou uma fotografia... era uma forma muito bonita de imaginar e enquadrar uma família feliz. Percebi que meu rosto estava quente, e dava-me conta de que o corredor parecia estar rodeado de chamas, chamas de fogo, que ardiam em uma excitação feliz, uma alegria movimentada. O tempo, parecia passar, e lá pelas tantas eu já estava muito sonolenta. Resolvi me aproximar mais à frente –ainda que essas noções me parecessem confusas aos olhos- e deitar-me numa cama que parecia não se escorar em móvel algum. Cama essa que parecia pedir por alguém com sono. Dali, deitada no macio travesseiro e sob o colchão florido de azul, de perto eu via acontecer a família, sem que ninguém me notasse... E, antes que eu percebesse, havia adormecido aos braços de Morpheu.
- Rê? Você está se sentindo bem?
- Hum.. Mas quem é você? E como sabe meu nome?
Acabava de acordar de um sono pesado e sentia dores de cabeça. Não estava ententendo nada.
- A verdade é que eu sei muito mais que seu nome.
- Você pode me explicar melhor? Da onde você vem? Estou muito confusa.
- Calma, olha, a verdade é que eu não precisaria te dar todas essas explicações se você não perdesse a hora. Esse sono está além do limite, você ficou dormindo aí não sei quanto tempo que perdeu o horário do terceiro andar.
- Er.. Mas como assim, horário do terceiro andar?
Nessa hora, eu mal podia acreditar nas coisas que ouvia. Primeiro, quis me certificar de que aquilo não era um sonho. Mas percebi que não tinha como fazer isso. Depois, tomei consciência de que alguém no mundo, além de mim, sabia da realidade das coisas minhas... ou seria o Elevador coisa do mundo? E mais, o Elevador funcionava com horário. Haviam regras, horas. Meu mundo estava de cabeça para o ar. Que coisa.
- É, Rê, não se faça assim de tão inconsciente né? No fundo eu e você sabemos que você sabe dessas coisas todas! – e baixinho sussurrou: Mais tens mais preguiça que bicho-preguiça, não é mesmo?
Aquela voz estava me dando nos nervos! Quem era ela para invadir o meu espaço, o meu mundo, mundo meu, das pequenas e maravilhosas coisas, detalhes que só eu enxergava e questionar minhas limitações?
- Já que insiste em não insistir em você, eu digo: sou a Luiza, sua grande amiga que dividiu com você momentos de grande importância.
- A Luiza? Que Luiza?
(Eu realmente parecia não me lembrar de nenhuma Luiza.)
- É que você adora ficar sozinha sabe. Na verdade, Rê, você gosta de falar isso por ai. Mas você não gosta não, você gosta mesmo é de gente. E não me venha com Luiza não hein, que você sempre me chamou de Lu. E me encheu de carinhos. E de uns desagrados desnecessários. Mas passou, confesso. O que acontece é que eu sei dessas coisas todas porque resolvi não vir pra cá sabe, achei isso tudo muito radical. Essa coisa de tratamento intensivo, reclusão social, achei muito ‘capital’. Preferi abrir os olhos e enxergar o que já estava posto nu na minha frente. E você quase conseguiu também. Mas veio aquela história de alma artística e te deixou pra baixo de novo....
Alma artística? Pra baixo de novo? Acho que estava conhecendo um lado meu que antes não imaginaria. Eu estava tão atordoada que sentia meu coração acelerar como o de uma lebre. De fato, realizei que primeiro precisava me acalmar. Luiza falava com tanta convicção que me peguei acreditando naquelas coisas todas de ela e de mim.
- Então me conte mais da minha alma artística...
- Então, foi aquela sua que te acompanhou por toda a sua vida, meneando a sua cabeça pra baixo e te deixando em constante frustração. Você nunca quis abandoná-la mas eu sempre percebi que tinha algo errado. Você gostava muito de sofrimento sabe? Era estranho pra burro porque você tinha um sorriso e tanto... Mas ai que você foi levando a vida nessa ‘alma artística’ e não parou de sofrer. E esqueceu de viver. E te deram um tratamento intensivo pós-vida. Ou pós-morte, acho que dá no mesmo essa denominação né? – e soltou um riso arcaico de canto de boca a dar calafrios na minha espinha-.
E foi nessa hora que eu não pude me conter. Quer dizer que eu estava morta? E que havia alguém me mandando pra um tratamento intensivo pós-vida (ou seria pós-morte)? Essa é alguma espécime de psicologia do paraíso? Ou eu estou no inferno?
Milhões de perguntas borbulharam na minha mente e eu simplesmente não podia agüentar o que meu coração sentia. Ou será que eu nem tinha mais meu coração? Será que eu ainda tinha a mim?
E num instante de esperteza, eu reparei que toda a conversa ocorrera sobre a cama, enquanto ‘Luiza’ sentada aos pés dela, conversava me olhando deitada com a cabeça próxima a cabeceira. Esperei que ela desviasse o olhar ao redor e fui, num pulo urgente, fora da cama e derrubando todos os móveis e brinquedos empilhados, causando um baita de um desastre. Correndo o mais rápido que pude, avistava a porta do Elevador distante, e o medo e a curiosidade do depois já eram tão grandes que nem cabiam em mim. Aliás, de que mim é esse que eu estou falando?